APRESENTAÇÃO
Douglas Norris Nelsen
(1923 – 2010)
gravador, desenhista, pintor
Por Hélio Schonmann
Douglas Norris (1925-2010)
foi notável representante da arte paulista, naquilo que ela
tem de mais subterrâneo. Sua obra veio à luz apenas em duas
ocasiões – 1982 e 1987 – quando realizou individuais na galeria
SESC Paulista, apresentando recortes de uma vasta produção,
entre gravuras, desenhos e pinturas. Afora esses raros momentos,
trabalhou praticamente incógnito, ao longo de quase sessenta
anos, movido por uma permanente necessidade interior. De nossos
encontros ficou-me na memória sua figura cordial, assertiva,
patriarcal, como que saída diretamente de alguma página do
antigo testamento.
Douglas foi um mestre
da xilogravura, na qual fez convergir severo rigor construtivo
e uma expressividade profundamente emocional. No desenho manifestou-se
com desenvoltura ímpar, trabalhando até poucos meses antes
de seu falecimento. Realizou também rica pesquisa pictórica,
que culminou com a conquista da síntese atmosférica, cromática
e gestual, nos últimos trabalhos. Em todas essas linguagens,
a forma se apresenta densa, estruturando narrativas de evidente
filiação expressionista, transitando entre a nota lírica e
o drama mais explícito.
A arte brasileira tem
precedentes significativos, no que se refere à exacerbação
de drama e lirismo – Oswaldo Goeldi e Alberto da Veiga Guignard
são casos emblemáticos. A poética de Douglas pode ser pensada
à luz dessas referências – principalmente no que diz respeito
à suas afinidades com a abordagem Goeldiana da solidão. Mas
a figura que marcou e definiu a trajetória do artista não
foi gravador, mas sim pintor, desenhista e escultor – Raphael
Galvez, com quem manteve um contato tão duradouro quanto fecundo.
Podemos assim situá-lo como herdeiro direto da geração que
se formou na convivência em torno do Sindicato dos Artistas
Plásticos e dos encontros de trabalho no já lendário Palacete
Santa Helena.
PAISAGEM HUMANA, PERTENCIMENTO,
LOCALIZAÇÃO
A expressividade cativante
dos personagens que povoam o universo imagético de Douglas
possui, na clareza da forma, trunfo inquestionável, mas isso
não elimina o mistério que os envolve – materializado, via
de regra, em penumbra, fusão e contra-luz. A polaridade clareza/mistério
abriu para o artista vasto campo de pesquisa plástica, que
o impeliu a desdobrar seu trabalho por diversas linguagens,
incluindo aí uma incursão significativa pelo mosaico. Seu
filho Igor ainda tem viva na memória a lembrança das caminhadas
que fazia com o pai pelas imediações da casa onde moravam,
no bairro de Santo Amaro, a fim de coletar pedras. Na variedade
mineral do entorno Douglas encontrou a riqueza cromática a
partir da qual foi construindo suas imagens. Nasceram assim
mosaicos que exploram de forma plena as possibilidades da
linguagem – traduzindo, na concretude do material, os vínculos
de ligação entre artista e cidade.
A emblemática sequencia
de retratos em xilogravura que realizou – somada às gravuras
nas quais focalizava cenas da vida cotidiana – configuram
verdadeiro mapeamento da população paulistana, mas é importante
ressaltar que esses trabalhos não se limitam ao mero registro
de uma tipologia local. O olhar do artista buscava no outro,
no diferente, a construção de uma cartografia afetiva que
o localizasse diante do mundo. Uma poética do pertencimento,
definida a partir da paisagem humana que o cercava – eis o
eixo dessa abordagem. Nesse sentido seu vínculo era estabelecido,
sobretudo, com a própria diversidade – característica definidora
da metrópole, construída por imigrantes.
Enquanto São Paulo se
agigantava, tornando-se inexoravelmente mais e mais impessoal,
um artista virtualmente invisível como Douglas focava a cidade
através das múltiplas existências individuais que a compunham:
em suas gravuras sentimos a vida de cada personagem como que
vista por dentro. Intuímos, na geografia desses olhares, a
paisagem que eles habitam.
Um curto mas eloqüente
depoimento nos dá a dimensão dos laços de empatia que envolviam
o artista e seus modelos: “Perto do Rio Tietê, retratei uma
garotinha de nome ‘Ondina’. Um rapaz, de pouca fala, ficava
nos observando, o convidei para ser retratado. Um dia a bonequinha
da menina caiu dentro do rio e o rapaz, mesmo vestido, pulou
dentro do rio para salvá-la. Voltei lá diversas vezes para
desenhar, descobri que aquele rapaz era bandido. Ondina me
deixou a boneca de presente e o rapaz, seu isqueiro. A arte
muda tudo”¹. A idéia de pertencimento ganha, nessa sintética
narrativa, largueza e consistência ímpares. Para Douglas,
definir como foco de representação a vida do habitante paulistano
era uma via de mão dupla: o artista entendia seu papel não
apenas como de observador e intérprete do contexto local,
mas como de sujeito que interfere nesse contexto. A arte constituía,
para ele, instrumento efetivo de ação e transformação.
A PAISAGEM FÍSICA DO
LOCAL
Como decorrência de
seus vínculos com o local, é natural que Douglas tenha registrado,
igualmente, a paisagem física de São Paulo. Nas xilogravuras
que versam sobre o tema, deparamo-nos com uma visão pautada
pela solidez. Os edifícios lembram aquelas pedras por ele
coletadas na própria cidade, matéria-prima dos mosaicos –
pesados blocos monolíticos, enfatizam a escala mínima da população.
Espaço coletivo que se impõe ao individuo, a cidade apresenta-se
como o avesso dos retratos. No contraponto entre os dois pólos,
Douglas definiu uma ótica coerente com seu tempo, fundindo
a pesquisa permanente da linguagem a um humanismo lúcido,
isento de ingenuidade.
As primeiras telas onde
o artista focalizou a paisagem paulistana apresentam abordagem
correlata à das xilogravuras – principalmente no que se refere
à busca por solidez – mas o desdobramento desse trabalho,
nas décadas seguintes, vai trilhar caminhos diversos. Em muitas
de suas derradeiras visões da cidade – realizadas com têmpera
a ovo, na década de noventa – o cenário é constituído por
um magma soturno, envolvente. Uma abordagem visceral, na qual
a ênfase gestual é equilibrada por fusões que vão construindo
densa atmosfera. Cabe destacar a assimilação que testemunhamos,
nessas pinturas, das lições de Ernesto de Fiore e do próprio
Galvez. Mas, para além dessas referências pictóricas, emerge
aí uma visão pessoal da paisagem suburbana, marcada por drama
e mistério.
É importante pontuar,
finalmente, que havia um “outro local” na existência e na
sensibilidade do artista, que chegou a se auto-definir como
“caiçara por adoção e coração” ². Sentindo-se assim vinculado
ao contexto litorâneo, realizou série de xilogravuras, nas
quais a cor, via de regra, se impõe. A praia não será nunca,
para Douglas, um cenário exótico e tropical, mas sim um habitat
repleto de significados existenciais, muito mais próxima dos
sentimentos humanos, com certeza, que a paisagem demasiadamente
compacta, densa – quase uma “paisagem¬-objeto” – da urbe por
ele criada.
INTEIREZA E RECLUSÃO
A vida de Douglas Norris
apresenta polivalência verdadeiramente impressionante, difícil
de igualar: além da dedicação incansável às artes plásticas,
foi ginasta, lutador de luta-livre, modelo, bailarino, cantor lírico, ator
premiado de cinema – participou de filmes da Vera Cruz, recebendo,
entre outros, o prêmio Governador do Estado – e de televisão,
nos tempos heróicos desse veículo. Nas últimas décadas dedicou-se
também a escrever contos e poemas.
A visibilidade desfrutada
no período dedicado às carreiras de ator e lutador contrasta
com seu posterior isolamento. Mas a arte não se alimenta necessariamente
de luz – desenvolve-se, por vezes, silenciosa, em meio à sombra
mais impenetrável. Eis aqui uma vida em consonância perfeita
com a obra: artista recluso por opção, gestou uma poética
que coloca a nu, da maneira mais desabrida, a beleza e a tragédia
de nossa existência. No epicentro desse universo tão intenso,
nos deparamos com a essência do drama humano – a solidão.
Em Douglas Norris a vida se fez obra e a obra manifestou vida,
em plenitude.
Notas.
1. "Fragmentos do artista: Douglas Norris", texto
de Luiz Ricardo Rufo
2. Texto autobiográfico, sem título.
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